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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Que bom, Pirralho, que você veio!...

Antônio Pinheiro é amigo de longa data. Ele e sua família. Plinhão foi, até, meu paraninfo na solenidade de conclusão do ginasial, no Santa Terezinha, onde estudamos entre 1961/1964. Dizem que eram tempos ruins: as crianças obrigadas a andar quase um quilômetro sobre um aterro de argila que no verão soltava uma puaca que envernizava até os dentes e, no inverno, parecia uma corda bamba de lama sobre o qual o equilíbrio precário era uma aventura. E ainda havia um rio a atravessar em canoinhas de cores alegres, e mais quase um quilômetro de ladeira pelas vielas do Amapá, e mais uma grota, um mata-burro e a subida íngreme do morro sobre o qual assentava a escola que tanto amávamos. Para nós, tanta alegria matinal era sempre uma festa.
Éramos uma turma unida – cerca de 35, desde o primeiro ano, mais tarde apenas com algumas substituições – e a gente o chamava de Pirralho. Pirralho era ruim de bola como ninguém! Mas era a mascote da turma e entrava no gramado com os demais, até porque vê-lo em campo era fonte de gostosas gargalhadas. Lembro de uma vez que ele, chamado pelo técnico no segundo tempo, adentrou o tapete de capim ralo, atravessou a passos vagarosos metade do campo, e sem dizer uma única palavra deu um chute na bunda de um rapaz da outra equipe. Com a mesma tranqüilidade saiu do outro lado. Nem esperou o juiz lhe mostrar o cartão vermelho. Foi tudo tão inesperado que havia gente rolando no chão, de tanto rir.
A partir de 1965, nos dispersamos. O grau mais elevado de ensino em Marabá era o ginasial. Daí em diante, estudos só nas capitais de um país vizinho chamado Brasil. No Brasil, nós, que fomos, nos desgarramos. Muitos dos que ficaram, como muitos dos que foram, acabaram morrendo: Pedro Mendes, Antônio Coutinho, Ari Pires, Devaldino, Félix da Rosena. Dos demais, que sei eu?
Nesta quinta-feira eu fui, depois de tantos anos, à igrejinha de São Félix, o padroeiro, onde rezávamos em latim e cantávamos em grego no coral suspenso, ao som do órgão medieval. A igreja estava cheia de marabaenses sobrados do dilúvio. Juntas, nossas idades somadas ultrapassariam a casa do milhar. Um padre estrangeiro entoava com vogais ora abertas ora fechadas um cantochão estranho, mas ainda pude ouvir, ao fundo, o som de cravo tirado por João Sariema dos teclados daquele órgão que os arcanjos devem ter levado para algum lugar.
Não acompanhei o cortejo ao encontro das águas de nossa infância e adolescência, onde seria derramada a salsugem de cloretos e sais que restaram da cremação de Pirralho. Eu estava no meu limite, ali sob o paletó que vesti para recebê-lo com o rigor devido ao reencontro das pessoas amadas. Estava certo, entretanto, que os amigos idos o aguardavam na margem à ilharga da canoinha colorida e enfeitada de Maracujá, o passador, para ajudá-lo na travessia, encaminhá-lo por entre as ruas tortuosas do povoado e fazê-lo subir a ladeira entre árvores frondosas até à mansão da paz infinita assentada no alto da colina.