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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012



Minha alma disporei em cantos


Abilio Pacheco - Revista do Difere - ISSN 2179 6505, v. 2, n. 3, ago/2012
apacheco@ufpa.br


Quando sigo por estas ruas, ouço a voz e a voz do poeta. A voz dos versos do mesmo modo como “retinem nos ouvidos pás e gritos”1 e a voz do próprio pagão ora “imerso nas coisas deste e dos outros mundos”2 , ora caminhando ao meu lado na Velha Marabá.
Não sei o que me levou aquele fim de manhã para a rua Sete de Junho e de lá caminhei meio ao léu até a Bartolomeu Igreja. E a Cidade Velha era-me este espaço morto como uma língua morta. Era-me um espaço de memória de outros, mas – não sei como – de mim. Como o latim, o Núcleo Pioneiro e seus bairros  – “Santa Rosa,  Jureminha,  Alto-do-Bode, Cabelo Seco”3 – eram-me completely  unheimlich. Reconhecidamente íntimo. Externamente familiar.
E eu seguia – Dante guiado por Virgílio – guiado por Ademir. Chegando já à Bartolomeu Igreja: “aqui era um puteiro, aqui era puteiro, aqui era puteiro...” dizia-me apontando uma e outra casa. “Eu saia porre de um e porre caía no outro”.
Não custou sua fala me trazer à tona os versos em que lamenta o destino inexorável dos meninos da região: e eles “serão juquireiro castanheiro lavrador presos de correição”4 e das meninas que nada serão senão “flores da terra” “na valsa do deus dará”, “sono sem sonho”5.
Cristalizado. Fossilizado... era um tempo de casas de tolerância tão perto uma da outra. Mas no meu mapa essas casas: o Cajueiro, o Copa, a Viúva, a Índia e a Piscina eram distantes entre si. Ficavam na Folha 21, na Folha 15, na Folha 16, no Belo Horizonte, Transamazônica... nenhum na Velha Marabá.
Ouço o poeta me dizer do romance que escreve em que a terra é coisa medieva. Assusto-me com sua certeza sobre os modos e os meios de produção na região. Assombro-me com aquilo que desconheço e que deveria conhecer, mas que de fato vejo... Mas calo.
Calo, não calando e aborrecendo-me. Vivo (vive-se) entre “fardos e farpas, agravos e adagas”. Em águas terçãs, impregnados pele e pelos, unhas e dentes, olhos e lágrimas, ouvidos e gritos “e a mão em chaga viva tece de urtigas / um manto sob o céu de pássaros e bruxas”. A cidade é ainda cheia de meninos sombrios, cães sem dono, cantores e poetas.
A vontade é a de sair aos gritos em versos alardeantes amorosos e politizados, como se a palavra fosse pão, água, vinho, festa e ar. A palavra modificadora da vida ordinária do operário e do cidadão vizinho.
Não sei como encerrou-se minha caminhada ao lado do poeta. Creio mesmo que nunca cessou.
Saímos da Bartolomeu Igreja. Entramos na Antônio Maia... E estamos ainda lado a lado nesta vida de versos e sonhos pela cidade. Nós que por ela reciprocamente “morremos todos os dias”.
Eu pouco “sei disperso neste coração legado às ventanias”, mas sei mesmo que vagamente da “negra noite acumulada na boca entre versos” de Ademir Braz.

Observação:
Este texto é um exercício de tradução recriativa ou transcriação a partir do poema Minha Cidade, Minha Vida, do escritor marabaense Ademir Braz. O texto de chegada procurou lançar mão de elementos do texto de partida com o intuito de também acrescentar experiência e afetos nossos sobre a cidade, objeto do poema. A intenção foi de aproveitar elementos da poesia de Ademir (deste e de outros poemas) para fazer um ensaio de prosa poética, efetuando uma certa tradução da força afetiva do poema, fazendo uso dos elementos composicionais do mesmo, de modo a tocar (como afirma Walter Benjamim sobre a tradução) o original, mas também enxertando no texto elementos de nossa própria experiência de leitura da cidade e de nossa relação afetiva com a mesma, traduzindo mas mesclando lirismo de dois sujeitos amantes de Marabá.
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1 Do poema “Águas de passagem”, In: Braz, Ademir. Rebanho de Pedras (Rebanho de Pedras & Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. p. 81.
2 Do poema “Minha cidade, minha vida”, In: Braz, Ademir. Rebanho de Pedras (Rebanho de Pedras & Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. pp. 25-7.
3 Do texto “A Terra Mesopotâmica do Sol ou guia nostálgico para o nada”. , In: Braz, Ademir. Esta Terra (Rebanho de Pedras & Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. p. 149.
4 Do poema “O Burocrata espia à janela”, In: Braz, Ademir. Esta Terra (Rebanho de Pedras & Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. pp. 125-6.
5 Do poema “Flor da terra”, In: Braz, Ademir. Esta Terra (Rebanho de Pedras & Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. p. 127.
6 Do poema “Minha cidade, minha vida”. In: Braz, Ademir. Rebanho de Pedras (Rebanho de Pedras & Esta Terra). Marabá:
Grafecort, 2003. pp. 25-7.
7 Idem.
8 Idem.
9 Idem.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Morre ex-deputado Aziz Mutran

No Contraponto & Reflexão


Morre Aziz!

Foi sepultado ontem (2) em Belém, o ex-deputado Aziz Mutran Neto, que faleceu na segunda feira (1). Aziz foi o primeiro proprietário da Radio Itacaìunas AM, foi deputado por dois mandatos e era um dos últimos dos filhos do patriarca Nagib Mutran.
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quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Dois marabaenses no IV Festival de Música

No Barrancas do Itacaiunas:


Antonio Metal defende um rock underground ...

Nilva Burjack exalta a natureza com o "Rio de Alegria"




Os cantores Nilva Burjack e Antonio Metal representam Marabá no IV Festival de Música Popular Parense nesta quinta-feira na Assembléia Paraense, em Belém. Eles defendem as músicas: "Rio de Alegria" e "Pesadelo", respectivamente.


Ambos viajaram nesta quarta-feira (19) para Belém, onde se juntam a outros dez concorrentes na grande final do Festival.

Ano passado a cantora Nilva Burjack ficou em terceiro lugar do Festival com a música “Maria do Rosário”.

Este ano a música Rio de Alegria aborda uma temática regional e ao mesmo tempo mundial, uma vez que em todos os lugares há um rio onde proporciona alegria a quem mora no entorno.
“Traz na canoinha o meu pão de cada dia”, reza trecho da canção numa clara alusão do pescador que sai todos os dias em busca do alimento para por à mesa, o peixe.
“Es irmão majestoso meu rio
Tua água é vida e me inspira a cantar”, nestes dois trechos da canção a musicista exalta o rio que é fonte de inspiração de muitas letras mundo afora.
Ademais a música alerta para o trato com que a humanidade está dando aos nossos rios, que invariavelmente sofrem com a poluição, fruto do descaso e o “progresso” desenfreado e que agride a natureza. (Abaixo a letra completa)
“Os rios são alegres, são vida, significam vida, carregam em seus leitos o sustento de milhares de família, movimentam a economia e muitos deles estão sofrendo com a poluição, então é preciso alertar a humanidade de que é preciso preservar, não só os nossos rios, como também todos os outros recursos naturais”, alerta a cantora. 

Bem à vontade no Festival

Já o roqueiro Antonio Metal interpreta a música “Pesadelo”, cuja autoria é dele e do baixista Daniel Jorge e a letra não tem uma temática pré-definida.
“Na verdade estamos bem à vontade nesse festival, a nossa música não tem tema aborda o abstrato da vida cotidiana, a música fala da realidade, o caos urbano, o stress o cotidiano de forma diferente, o amor o ódio, enfim não tem clichê, ou tema é rock”, contextualiza Antonio Metal.
Para ele o Festival é mais que uma vitrine é a oportunidade de mostrar o trabalho dele e da banda “Prima Matéria” em Belém.
“Quem não quer expandir, mostrar o trabalho, então o Festival, mais do que a competição é uma excelente vitrine", acentua.


Rio de Alegria - Nilva Burjack


E quantas vezes meu rio
Que lavou as minhas mágoas
Me traga no seu banzeiro
Um garimpeiro abonado ...

Vou ti fazer um convite
Pra conhecer o meu rio
Rio de alegria que vai bater nesse mar...
Rio de alegria que vai bater nesse mar...

Vamos descer no teu leito
Pra buscar a poesia
Traz na canoinha
O meu pão de cada dia
Traz na canoinha
O meu pão de cada dia ...

Como é lindo te ver refletindo o luar...
Vem matar minha sede
És irmão majestoso meu rio
Tua água é vida e me inspira a cantar ...
E quantas vezes meu rio ...

sexta-feira, 4 de maio de 2012

E lá se foi Pedrinho...


No Correio do Tocantins:

03/05/2012
 Pedro Morbach já não desenhava
 há pelo menos 3 anos 
Um dos gênios das artes plásticas do Pará e herdeiro
de outro grande nome, Pedro Morbach morreu na noite
de segunda-feira (30/4), em Castanhal, após uma parada cardiorrespiratória. Ele tinha 76 anos e teve uma vida pautada pela simplicidade e pelo registro da história do seu tempo por meio dos quadros em nanquim. O corpo foi sepultado na terça-feira (1°/5), no cemitério Recanto da Saudade, em Belém.
Pedro era filho do também artista plástico Augusto Morbach e irmão de Rômulo, José Arthur e Frederico Morbach (in memoriam), este último jornalista e por muito tempo articulista deste Jornal CORREIO DO TOCANTINS.
O CT apurou que Pedro lutava há um ano contra um câncer no intestino, o qual não pode ser combatido com uma cirurgia devido à idade avançada e condições físicas fora do ideal do paciente. Casado já em idade madura, ele não teve filhos e também ficou viúvo prematuramente. Nos últimos anos, Morbach vivia em uma Casa de Repouso em Castanhal e era visitado constantemente pelo irmão José Arthur, que é médico. O outro irmão vivo, Rômulo, mora em Brasília (DF).
Segundo Íris Morbach, viúva de Frederico, irmão dele, Pedro teve uma morte tranquila, sem sofrimento. Ela destaca que ele já não pintava há pelo menos três anos, período que coincide com a morte da mãe Doralice Morbach. “Tínhamos uma convivência muito boa. Ele era a pessoa mais simplória que eu já conheci”, disse dona Iris ontem ao CORREIO, após ter participado do funeral do ex-cunhado.
ARTE
Um dos precursores das artes visuais na região e conhecido nacionalmente com a técnica de obras em nanquim, o Pedro Morbach começou a desenhar ainda criança recebendo influência direta de seu pai.
Embora não tenha participado de nenhuma escola de arte, fez de seu trabalho um reviver das raízes culturais de Marabá, retratando em óleo sobre tela, fatos importantes de nossa região, como a abertura da rodovia Transamazônica (1974). A predominância de suas obras é em nanquim e nelas Pedro retrata a vida do povo ribeirinho, o folclore, o castanheiro, o posseiro e a paisagem humana dessa região tão conhecida pelo artista.
De acordo com Cátia Weirich, responsável pela exposição recente de trabalhos do artista, com seus belíssimos trabalhos Morbach exerceu enorme influência sobre os jovens artistas da região. Cátia ainda ressalta que Morbach já expôs em grandes centros culturais como Belém, Brasília (DF), São Paulo (SP) e até em Berlim, na Alemanha.
Pedro Morbach também é homenageado com seu nome batizando a Pinacoteca Municipal de Marabá, devido à importância de seu trabalho e por ter sido ele o primeiro artista a contribuir para início do acervo da pinacoteca. (Patrick Roberto)


Morte de Pedro Morbach repercute

A morte de Pedro Morbach é muito lamentada em Marabá, onde sempre foi um ícone da cultura regional. Abaixo, alguns comentários sobre o passamento do artista:

“Pedro Morbach foi um artista além do seu tempo e sua morte prematura é uma grande perda para a cultural regional e será sentida por toda a classe artística que se espelhou em seus trabalhos que são referência nas artes visuais.
Pedro retratava como ninguém o nosso cotidiano numa época em que a fotografia não era tão difundida. O artista através das suas iconografias perpetuou personagens típicos da Amazônia como o garimpeiro, o pescador, o castanheiro, entre outros.
Ele também foi um grande defensor da natureza regional por retratar em suas obras a fauna e flora típicas da nossa região preservando assim para as futuras gerações esse grande legado natural.
Espero que as obras de Pedro continuem por muito tempo encantando a sociedade marabaense e para homenagear este grande artista mesmo antes da sua morte a Fundação Casa da Cultura de Marabá estava com uma exposição intitulada o ‘Nanquim Amazônico’, que irá circular em varias cidades do Maranhão e que tem como personagem principal Pedro Morbach, grande ícone desta linguagem artística tão difundida em nossa região”. (Noé von Atzingen - presidente da Fundação Casa da Cultura)
“A nossa terra tem sido pródiga em ingratidões com os seus valores intelectuais, artísticos e morais. Rapidamente, lembro-me de Joãozinho Seriema, Iran Monção, Frederico Morbach, Eduardo Abdelnor, Augusto Bastos, Sinhozinho Morbach, Augusto Morbach, Azizinho Mutran, Coutinho, Pedro Vale, João Maria Barros, Mario Mazzini, entre outros que me fogem à memória e que se destacaram na pintura, nas letras, no teatro ou foram paradigmas de honradez na vida pública, como Pedro Marinho de Oliveira, Dionor Maranhão, Raimundo Rosa (também nas letras), Raimundo Cunha, para falarmos apenas de quem não está mais conosco. Por outro lado, se você percorrer os bairros mais novos, vai encontrar ruas e mais ruas homenageando pessoas ainda vivas, num flagrante desrespeito à lei, que proíbe tais homenagens. Agora foi o Pedrinho Morbach, glória das artes paraenses, que tem seu umbigo enterrado nas barrancas do Tocantins e viveu seus últimos anos esquecido de quantos passaram pelo poder em nossa terra. A nossa história verdadeira está morrendo com os nossos antigos e isso é lamentável. Pergunte a um jovem estudante de Marabá sobre algum destes nomes que citei acima, ícones de nossa estruturação social, intelectual e artística e ele os desconhecerá solenemente. (Plínio Pinheiro Neto - advogado)
“Morreu ontem (segunda, dia 30), aos 76 anos de idade, em Castanhal, o artista plástico Pedro Morbach. Era meu tio e filho de meu avô, Augusto Morbach. Ambos desenhistas e grandes mestres do nanquim. O exímio desenhista se foi na solidão e na quietude de seus muitos anos sem pintar, sem desenhar, e sem nos contar as velhas estórias sobre os castanhais nativos de Marabá.
A Casa da Cultura de Marabá tem um belo acervo de Pedro Morbach. E a Galeria Elf, de Lúcia Chaves, é proprietária de alguns dos belos desenhos do pintor”. (Marise Rocha Morbach - no blog Flanar)

terça-feira, 10 de abril de 2012

Historiadora avalia a arte poética de Ademir Braz

terça-feira, 10 de abril de 2012

A Poética de Ademir Braz:
Canto de memória que conspira outros tempos


Profa. Dra. Idelma Santiago da Silva*
[UFPA/ Campus de Marabá]

A poesia pode constituir-se em prática de significação fundamental na produção de sentidos à existência individual e coletiva. Sob meu olhar de historiadora, é assim que encontro a poética de Ademir Braz: instauradora de realidade! Canto de memória que conspira outros tempos.
Em Minha cidade, minha vida encontro o poeta em diálogo com a cidade, mas também com sua própria vida e seus pertencimentos: “Eu vivo imerso para sempre neste/ e nas coisas deste e dos outros mundos”.
No poema História Natural [1978] tem-se refletida a subjetivação de um contexto histórico de abruptas transformações econômicas e sociais no sudeste do Pará. A palavra surge insubmissa como documento cultural de tradução de um tempo de dilaceramento de identidades e outras tragédias. O próprio Ademir Braz definiu-se como “trabalhador cultural, militante numa área de conflitos, de desenfreada e selvagem exploração capitalista, de destruição criminosa da natureza” e assumiu a perspectiva crítica e prospectiva de sua poesia: “Ora, uma pessoa é uma pessoa mais as suas circunstâncias. Logo, a produção cultural dessa região longínqua não poderia ser outra senão aquela voltada para o questionamento de sua realidade imediata – naturalmente trágica – e para o desejo de mudança no sentido de uma alternativa mais humana e mais digna de existência” (Roteiro crítico para a fronteira do inferno, 1988).
Na poesia de Ademir Braz os deslocamentos culturais e sociais decorrentes dos processos de ocupação da região são temas recorrentes, revelando um enraizamento crítico no tempo presente. Essa inserção temática nas circunstâncias imediatas e no cotidiano [uma poesia que não se faz isolada da realidade] revela não somente uma poética que toma a palavra na sua função social, mas também engendra uma estética enriquecida: é “poeta que sabe chamar o pão de pão e o vinho de vinho” (Pablo Neruda) numa estética que dialoga com o coração e a consciência.
Nos versos de Símbolos avessos de àbaraM a apreensão irônica da dialética dos pertencimentos: a musa [cidade] e o poeta se consomem numa luta de negação e cumplicidade. Palavras que trabalham o material ácido da realidade e o faz retornar, instaurando para o poeta seu lugar no combate, como em Minha cidade, minha vida:

A voz tonitroante – e inútil, cidade –
do poeta ressoa nos casebres
e na praça mouca dos poderes
(mas nem por isso cessarei o alarde).
[...]
Sim, são ácidos esses dias,
quando até o amor se exila.
Então a poesia sai de mim aos gritos [...]

No poema História natural, o próprio título uma ironia, assim como a “desculpa” que atravessa o texto, mistura verso e prosa e possui características interdiscursiva e intertextual. Pelo lado de uma relação contratual [com os iguais da “tribo”], os percursos temáticos principais tratam da relação equilibrada cultura-natureza e da herança comum com suas virtudes, desigualdades e “mistérios”. Do outro lado, da relação polêmica, têm-se os temas da invasão e dominação do estranho [atores da frente capitalista] que deslocou os sentidos da cultura local e a transformou em “museu”. A tragédia do semiocídio vitimou a “tribo”.
Esse poema reflete a experiência do descentramento das identidades, práticas culturais e de sociabilidades locais. Nele, o elemento da cosmovisão é marcante e levanta a questão da existência [naquele presente] de duas ordens humanas de relacionamento com a realidade. De um lado, uma cultura do encantamento e das aparências, referência para as interações comunitárias e do saber construído na relação com a natureza. De outro, uma perspectiva cultural baseada em separações e hierarquizações das dimensões da realidade. É um discurso que vê na circunstância dos deslocamentos a imposição da segunda perspectiva cultural, através da dominação que se exerce especialmente por meio de novas formas de ocupação e uso do território e dos “conhecimentos” da realidade implicados nessas novas práticas: a verdade instrumental e desencantada do mundo. Conforme constatou Paes Loureiro (Cultura amazônica, 1995, p. 413), “vem ocorrendo na Amazônia a prevalência progressiva das relações fundadas da exploração do trabalho, no agravamento das desigualdades entre os homens, no desapossamento cultural. Emerge, no conjunto dessas mudanças, uma cultura da exclusão, que se nutre de uma racionalidade linear e prática, em lugar da cultura fundada no poético”.
O poema História natural é encerrado com um epílogo, uma síntese de seu percurso temático. A forma de ocupação da região, neste período, tem significado uma tragédia para as populações locais, suas formas de vida e sua cultura. Os “cavaleiros” que entraram portas adentro não são qualquer migrante, mas sim a frente pecuarista que vinha, desde fins da década de 1960, ocupando a região. Narrativa de uma “tragédia”, mas poética que deseja instaurar um horizonte de possibilidades para os “sobreviventes”:

ei parceiro
tem um pássaro verde no teu ombro
e uma flor de sapucaia em teus cabelos.

não os espante, parceiro.
não os destrua, parceiro.
           
No poema Ao largo [2008], àqueles que aqui estiveram desde tempos deslembradosjuntam-se outros recém-chegados, os errantes da pobreza, da imigração à procura de trabalho. Seguem como excluídos das memórias e realizações da cidade, da qual também o poeta se põe ao largo: “Já não te amo mais cidade minha. [...] Um gigantesco mar nos põe ao largo/ e singro, em velames, a esquecer teu cais”. Pôr-se ao largo, para Ademir Braz, é retornar à poesia insubmissa e crítica sobre um tempo e a cidade presentes, arremeter contra a frequente ideia de que já estão selados os destinos de sua gente e de seus sonhos humanos:

Para onde irão a seguir (além da cerca do latifúndio
e da cova anônima de indigentes sem luto),
sob o céu encauchado no forno das siderúrgicas?

Eis uma possibilidade para a poética de Ademir Braz: documento cultural de um tempo detragédia e de uma palavra impregnada de humanidade. Uma releitura para refletir os sentidos das experiências humanas nesta região.
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Doutora em História e Professora da Universidade Federal do Pará, em Marabá.

quarta-feira, 14 de março de 2012

No Dia da Poesia, um presente aos leitores




Enseada dos anos
Ademir Braz

O espelho me devolve a barba de vários dias:
umas cerdas brancas, duras, de velho cuandu.

Deve ser esse fascínio dos 600 anos... Para onde
fluíram em maciez e furor as antigas manhãs?
Onde as noites nevadas de espuma? Onde
o espanto de fardos e fados rarefeitos, verbo
em sangue no guardanapo dos botequins?

O cuandu ri no espelho... Envelhecer é isto?
Esse tumulto com os signos, este enorme,
colossal desapego à posse do supérfluo?
Que é o essencial, quando tudo esvaiu-se?

Ainda gosto de árvores, ternura e afagos;
de cães sarnentos e gatos de beco. Trago n’alma
a enseada morna que os abriga e aos amigos.
Grandes, por igual, são minhas amarras às coisas
que sejam pássaros, mar, plantas e silêncio.

Dessas coisas claras, certifico. Mas o que faço
das lembranças, tumultuárias buganvílias?

Os amores, comparo-os às tainhas de Maiandeua.
Quando as vi, na primeira vez, pareciam milhares
a saltar entre a praia do porto e o manguezal.
Se o tempo as trazia, em época exata de chuva e sol,
fervilhava o mar sob redes e barco, e  pescadores
colhiam mais cardumes que poderiam consumir
ou vender e que, mortos, relançados às marés,
prateavam de escama a fímbria macia do areal.
Tanto o desperdício que, não muito depois,
rarearam até sumir ao longe na costa do Marajó.

(As tainhas que amei, também migraram. Foram
acasalar  bem longe da minha rede de pescador.)

Estes idos amores, contudo, conservo todos aqui
(ainda que tenham durado a sina de uma rosa)...

                                    II
A primeira paixão, na luminosa adolescência,
Levou de mim para sempre a inocência.

                                III
Muitos anos depois, numa cilada, tomou-me
a alma encarcerada o amor mais repentino.
E fui, como um pássaro a bater-se no espelho
resgatar, quem dera, o que perdera em menino.

E vai, um dia, sumiu no arrebol a juruti fagueira...

Se eu tivesse, então, tirado de meus ombros
E lançado a fera à montoeira dos meus sonhos
Não haveriam mais pesadelos, mais escombros,
nem seria o amor senão a doida cachoeira
Que nos arrasta e leva pela vida aos tombos.

                                    IV

A muito amada sentou-se no muro e por trás dela
eu via a luz da casa com o brilho velado da vidraça.
Era um lugar de nome indígena, algo quase assim:
a muito amada vinha do colégio e eu, de muito longe:
da terra mesopotâmica do sol, a mochila encardida
do pó que o vento espalha ao norte dos agrestes.
Lá nos conhecemos, vivíamos, lá um bêbado amou-a
com amor que o fez perder-se dos parceiros de balcão.
Mas ela mudou-se e fui revê-la num insano impulso
e dei com esse vento de soturna lágrima e adeus.
Penso às vezes que morri naquela noite de pétalas
e transmutei-me em pássaro sem abrigo ou canto
e desde então peregrinei sem causa à parte alguma.
Sim, é quase certo que morri naquela noite de pétalas...
                                 
                                       V
Ninguém nunca mais é o mesmo depois do amor.
Ceifada a fone, chegada a noite espessa da solidão.
Rola a alma sem itinerário para lugar nenhum.

                                      VI

Eu, de mim, distribui o que sobrou da ventania.

                                      VII
Em Romana, andávamos nus, a companheira
a espiar navios feéricos sobre o verde mar.
Tão distantes e misteriosos!... À noite, apenas
vela acesa na curva imaginária do horizonte
enquanto nos amávamos sobre palafitas.

                                  VIII

Na cidade de cal, perdida no silêncio do cerrado,
a namorada levou seu visitante a um lugar estranho
- o centro geodésico de alguma coisa – onde havia
uma placa, seixo sem valor e um círculo cimentado
para receber alienígenas e discos voadores.
Lá, sentamo-nos na grama e não vi luzes na manhã.
Trouxe no bornal - e ainda deve estar aí nalguma parte -
um punhado de cascalho sujo e mítico, talvez resto
do que fora  abissal rochedo de  oceano profundo.

                                     IX

Eu olhava a luz a crepitar na chuva da madrugada.
Bebia aguardente e cerveja no bar soturno (só o dono
atrás do balcão) e olhava a luz imunda na rua insone.
Eu era só um artista sem certezas, e a cidade um pássaro
morto sob a chuva. Esse vulto em branco, entretanto,
está bem vivo e úmido à porta, os seios de romã, a face
alada do arcanjo que vai levar-me a qualquer parte.
Alva e transparente no vestido longo, ela pede vodka
e solta o corpo esguio numa cadeira mais ao longe.
Ergo-me e dou a mão ao fado inscrito na noite suja.
Então ela canta, e me dou conta que morrerei esta noite,
fugiremos para as estrelas acima da tempestade, rumo
às galáxias e outros sóis. Nunca mais voltarei! Mas antes
de largar-me quase morto à margem do trago e das taças,
três dias nos amamos entre  cachoeira e saranzais.

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quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Fronteiras internas da nação brasileira

Por Idelma Santiago 

Professora UFPA/Marabá

No Brasil a construção de representações ficcionalizadas de povo e cultura (fraternidade racial) se fez através da eliminação do negro do projeto nacional: silenciamento no ideal de nacionalidade e exclusão das condições de cidadania. Uma conservadora narrativa do Brasil como uma comunidade homogênea, especialmente assentada no discurso da harmonia das raças, somente passou a ser questionada nas últimas décadas, exatamente por essas culturas empurradas para a margem.
No nosso país, a questão do descentramento da identidade nacional é menos uma questão de condicionantes da globalização econômica e cultural, e mais especificamente um movimento da nação dividida no interior dela própria, enfrentando, no presente, o desafio da heterogeneidade e das desigualdades de sua população.  O desafio, então, não é uma questão da relação com “outro” povo, mas uma questão da “alteridade do povo-como-um” (Bhabha, 2003).

Em 1894, Nina Rodrigues, médico defensor das teorias raciais com base em modelos darwinistas sociais, disse que “se um país não é velho para se venerar, ou rico para se fazer representar, precisa ao menos tornar-se interessante”.  Naquele contexto, mediante os recentes acontecimentos da abolição da escravidão e a proclamação da república, as elites brasileiras se preocupavam em resolver o “problema” da identidade da nação. A solução foi a passagem de uma visão da miscigenação como o “espetáculo” e o laboratório curioso e degradante das raças, predominante na segunda metade do século XIX e inícios do século XX, para a positivação da mestiçagem, através da construção do “mito das três raças” como a grande representação nacional.

O tema da raça sempre ocupou uma centralidade nos discursos de identidade nacional no Brasil. Assim, temos um país que se define pela raça, numa perspectiva etnocêntrica (a metarraça mestiça), cujos ideais de identidade nacional fundamentados na unidade política e na homogeneidade racial, naturalizou na sociedade o que Florestan Fernandes definiu como preconceito retroativo, isto é, um preconceito de ter preconceito.  Por outro lado, nessa forma de racismo mestiço e cordial, os negros, historicamente, tem sido visibilizados a partir de predicados que explicam a sua exclusão do modelo de cidadão e sociedade definidos à sua revelia e são invisibilizados em suas reais necessidades, seus aportes à formação sociocultural brasileira, porque se quer garantir um tipo de sociedade hipoteticamente harmonizada.

Estes são alguns dos temas interditados ao debate na sociedade brasileira. Aqui as desigualdades sociais foram transformadas em marcas de diferenças essenciais. Pensemos, por exemplo, nas resistências postas ao reconhecimento dos territórios de comunidades negras (remanescentes de quilombos) e na pouca efetivação, inclusive pelos cursos de licenciaturas, da lei que determina a abordagem das histórias e culturas afrobrasileiras e indígenas na educação básica.

Segundo Dalmir Francisco (2000), na compreensão sobre o fenômeno racial e étnico no Brasil, o modo predominante de ver-o-negro é o “modo de ver para fazer desaparecer”. A ideologia da comunidade tangida pela harmonia das raças visa fazer desaparecer o outro que deverá diluir-se, misturar, desfazer-se. O negro, na ideologia da mestiçagem, não é mais (foi escravo), não permanece (está se diluindo pela mestiçagem) e que não será, pois estará diluído (lavado) na futura metarraça.

O questionamento dessa conservadora narrativa do Brasil ganhou força nos anos 70 do século XX, quando emerge um modo de ver o negro como sujeito de sua história e destino, corroborado, nos ano 80, pela expressão cultural-religiosa e artística dos afrobrasileiros.

Certamente, pesa-nos a história de “elogio” da mestiçagem sincrética, da cordialidade e da democracia racial, bem como uma cultura política de esconjuramento dos conflitos sociais, vistos comumente como acontecimentos prejudiciais. Nessa perspectiva, a negociação necessária e adequada é aquela que preserve como meio e fim a harmonia da convivência social e o “interesse nacional”. Aqui, por exemplo, como não ver essa cultura reproduzir-se nos discursos e práticas do Estado brasileiro em torno dos conflitos desencadeados nas pretensões de implantação de grandes projetos econômicos, cujos interesses do capital são transvertidos em interesses da nação.
Não estou pretendendo fazer confundir relações de classe com relações raciais, contudo, essas questões no Brasil são reproduzidas em condições e situações implicadas. Também porque não podemos, agora, considerar que nossa questão é apenas “acertar as contas” com o passado. A questão de como nos formamos nos remete para as nossas divisões e contradições presentes. Por exemplo, nestes contextos de colonização e grandes projetos na Amazônia ou expansão da monocultura em larga escala (agronegócio) em várias regiões do Brasil, têm-se reproduzido processos de racismo, nalgumas situações denominadas de “racismo ambiental” por alguns pesquisadores. Concretamente trata-se de contextos de intensa divisão e segregação social, cujos mecanismos de exclusão e tratamentos racistas têm-se direcionado, sobretudo, a índios, negros e nordestinos. Processo semelhante tem ocorrido no sudeste do Pará com os denominados “maranhenses”.
Assim, discutir as fronteiras da nação brasileira é reconhecer, conforme Stuart Hall (2000), que  as "identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, dedivisões e contradições internas, de lealdades e de diferençassobrepostas".  É reconhecer também as inúmeras contra-narrativas da nação, que rasuram suas fronteiras totalizadoras e o discurso do “interesse nacional”. E, para além do “interessante”, enquanto mestiço e exótico (visto como a mistura de fascínio e medo), participamos do jogo de construir e dividir a nação, apresentando nossas demandas, diferenças, significações marginais e expondo nossas condições desiguais.