Por Idelma Santiago
Professora UFPA/Marabá
No Brasil a construção de representações ficcionalizadas de povo e cultura (fraternidade racial) se fez através da eliminação do negro do projeto nacional: silenciamento no ideal de nacionalidade e exclusão das condições de cidadania. Uma conservadora narrativa do Brasil como uma comunidade homogênea, especialmente assentada no discurso da harmonia das raças, somente passou a ser questionada nas últimas décadas, exatamente por essas culturas empurradas para a margem.
No nosso país, a questão do descentramento da identidade nacional é menos uma questão de condicionantes da globalização econômica e cultural, e mais especificamente um movimento da nação dividida no interior dela própria, enfrentando, no presente, o desafio da heterogeneidade e das desigualdades de sua população. O desafio, então, não é uma questão da relação com “outro” povo, mas uma questão da “alteridade do povo-como-um” (Bhabha, 2003).
Em 1894, Nina Rodrigues, médico defensor das teorias raciais com base em modelos darwinistas sociais, disse que “se um país não é velho para se venerar, ou rico para se fazer representar, precisa ao menos tornar-se interessante”. Naquele contexto, mediante os recentes acontecimentos da abolição da escravidão e a proclamação da república, as elites brasileiras se preocupavam em resolver o “problema” da identidade da nação. A solução foi a passagem de uma visão da miscigenação como o “espetáculo” e o laboratório curioso e degradante das raças, predominante na segunda metade do século XIX e inícios do século XX, para a positivação da mestiçagem, através da construção do “mito das três raças” como a grande representação nacional.
O tema da raça sempre ocupou uma centralidade nos discursos de identidade nacional no Brasil. Assim, temos um país que se define pela raça, numa perspectiva etnocêntrica (a metarraça mestiça), cujos ideais de identidade nacional fundamentados na unidade política e na homogeneidade racial, naturalizou na sociedade o que Florestan Fernandes definiu como preconceito retroativo, isto é, um preconceito de ter preconceito. Por outro lado, nessa forma de racismo mestiço e cordial, os negros, historicamente, tem sido visibilizados a partir de predicados que explicam a sua exclusão do modelo de cidadão e sociedade definidos à sua revelia e são invisibilizados em suas reais necessidades, seus aportes à formação sociocultural brasileira, porque se quer garantir um tipo de sociedade hipoteticamente harmonizada.
Estes são alguns dos temas interditados ao debate na sociedade brasileira. Aqui as desigualdades sociais foram transformadas em marcas de diferenças essenciais. Pensemos, por exemplo, nas resistências postas ao reconhecimento dos territórios de comunidades negras (remanescentes de quilombos) e na pouca efetivação, inclusive pelos cursos de licenciaturas, da lei que determina a abordagem das histórias e culturas afrobrasileiras e indígenas na educação básica.
Segundo Dalmir Francisco (2000), na compreensão sobre o fenômeno racial e étnico no Brasil, o modo predominante de ver-o-negro é o “modo de ver para fazer desaparecer”. A ideologia da comunidade tangida pela harmonia das raças visa fazer desaparecer o outro que deverá diluir-se, misturar, desfazer-se. O negro, na ideologia da mestiçagem, não é mais (foi escravo), não permanece (está se diluindo pela mestiçagem) e que não será, pois estará diluído (lavado) na futura metarraça.
O questionamento dessa conservadora narrativa do Brasil ganhou força nos anos 70 do século XX, quando emerge um modo de ver o negro como sujeito de sua história e destino, corroborado, nos ano 80, pela expressão cultural-religiosa e artística dos afrobrasileiros.
Certamente, pesa-nos a história de “elogio” da mestiçagem sincrética, da cordialidade e da democracia racial, bem como uma cultura política de esconjuramento dos conflitos sociais, vistos comumente como acontecimentos prejudiciais. Nessa perspectiva, a negociação necessária e adequada é aquela que preserve como meio e fim a harmonia da convivência social e o “interesse nacional”. Aqui, por exemplo, como não ver essa cultura reproduzir-se nos discursos e práticas do Estado brasileiro em torno dos conflitos desencadeados nas pretensões de implantação de grandes projetos econômicos, cujos interesses do capital são transvertidos em interesses da nação.
Não estou pretendendo fazer confundir relações de classe com relações raciais, contudo, essas questões no Brasil são reproduzidas em condições e situações implicadas. Também porque não podemos, agora, considerar que nossa questão é apenas “acertar as contas” com o passado. A questão de como nos formamos nos remete para as nossas divisões e contradições presentes. Por exemplo, nestes contextos de colonização e grandes projetos na Amazônia ou expansão da monocultura em larga escala (agronegócio) em várias regiões do Brasil, têm-se reproduzido processos de racismo, nalgumas situações denominadas de “racismo ambiental” por alguns pesquisadores. Concretamente trata-se de contextos de intensa divisão e segregação social, cujos mecanismos de exclusão e tratamentos racistas têm-se direcionado, sobretudo, a índios, negros e nordestinos. Processo semelhante tem ocorrido no sudeste do Pará com os denominados “maranhenses”.
Assim, discutir as fronteiras da nação brasileira é reconhecer, conforme Stuart Hall (2000), que as "identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder , dedivisões e contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas". É reconhecer também as inúmeras contra-narrativas da nação, que rasuram suas fronteiras totalizadoras e o discurso do “interesse nacional”. E, para além do “interessante”, enquanto mestiço e exótico (visto como a mistura de fascínio e medo), participamos do jogo de construir e dividir a nação, apresentando nossas demandas, diferenças, significações marginais e expondo nossas condições desiguais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário