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sexta-feira, 22 de abril de 2011

Clauber Martins, um cantador

Mandei e-mail a alguns amigos sobre os objetivos culturais e artísticos deste blog, inclusive pedindo-lhes contribuição. Vários desses amigos, colaboradores potenciais, assinalaram seu apoio. Um deles, Clauber Martins, compositor premiadíssimo em festivais Brasil a fora, mandou esse poema abaixo com uma bela foto sua do Tocantins que, infelizmente não pude aproveitar. Para compensar o prejuízo, coloquei foto minha, irremediavelmente inferior à dele, mas, paciência, tentei remediar.

ESSE RIO



Esse rio tem muitas faces
Às vezes de calmaria
Às vezes de truculência
Esconde tanta ciência...

Desde o nascer do dia
Até o cair da tarde
Nota-se o imenso alarde
Dos que rodeiam esse rio
 
Depois do banho de ouro
Esse rio muda de cara
Veste uma roupa escura
Cravejada de ternura
Pela lua cor de prata
E sai cantando cantigas
Regidas pela nascente
Ritmadas por cascatas

 As ciliares do rio
Como um imenso relicário
Apreciam a serenata
Entre as cortinas da mata
Num caudaloso ritual
Como se batessem palmas
E elevassem suas almas
À vastidão musical.
                                  http://www.claubercantador.blogspot.com
 

Charles Trocate, combatente das palavras

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã
(Carlos Drummond de Andrade, “O Lutador”)

Paraense de Castanhal, 35 anos, Charles Trocate é um combatente caboclo armado de palavras. Ao contrário do lutador de Drummond, porém, ele não se confronta com os vocábulos, nem tenta seduzi-los para prover seu próprio sustento num dia de vida. Cultiva-os, em verdade, para saciar a sede de justiça de um povo e de uma terra profundamente espoliados pela voracidade do latifúndio e das grandes corporações.  Sem nenhum travo de zanga ou desgosto, enlaça-os com carícias de mateiro para municiar o alforje de poeta-andarilho, “sem cavalo nem país esticando o invisível, / de poste em poste / adivinhando o desapego”. Ele próprio confessa sua parca provisão: “acaso reúno no bolso / a palavra e todo o inverno paralisado” – e o que lhe resta é apenas um toscoeito de pedras indiviso”.
O comentário é do analista literário Luiz Ricardo Leitão, feito em maio de 2009 no Rio de Janeiro. O analista recorda haver conhecido Charles Trocate no Pará, e viu nele um poeta que, como Drummond de Andrade, carrega consigoum mapa e um destino precário que insulta”, quem sabe a feição amazônica de dizer que possui somente duas mãos e o sentimento do mundo.
“A cartografia, aliás, diz Leitão, é um traço indelével da cidade que o abriga, essa hipnótica Marabá, fundada há menos de um século na confluência dos rios Itacaiúnas e Tocantins. Próspera testemunha dos anos dourados do ciclo da borracha e grande centro de exportação da castanha-do-pará, ela se cindida entre os antigos casarões da Cidade Velha e a singular configuração da Nova Marabá, traçada pelos militares em plena ditadura, cujo desenho representa uma enorme castanheira onde nãologradouros convencionais, mas sim folhas que desafiam a imaginação de visitantes incautos como este escriba que ora se manifesta.

Os tempos do fausto se foram, e agora Marabá representa o epicentro de um mundo em vertiginosa transformação, impulsionada pela temporalidade avassaladora do capital. As mineradoras, sobretudo a colossal e onipotente Vale do Rio Doce, varrem a região, pródiga em ferro e manganês, commodities vitais de um planeta neoliberalmente globalizado. Os trens cruzam noite e dia a paisagem com vagões abarrotados de minérios que os navios irão despejar nas fornalhas do outro lado do mundo, a preço de banana, para que mais tarde regressem a Bruzundanga sob a forma de trilhos e outras mercadorias dez ou quinze vezes mais caros.

A poesia de Trocate é um contraponto – e um contratempolírico e beligerante a essa vertigem. Ele ouviu o “ultimato do totem” e nos revela sem nenhum pejo sua advertência: “– O século está vestido de mofo / E manca.”
A própria dicção do trovador acusa o efeito abrasivo da razão instrumental:
“Na garganta
Outros mormaços se fazem
Chamo para uma dança sem fim
                                  a racionalidade
Mas ela foge em disparada
E acena um raro pacto
Íntimo.”

Ou ainda:

“O que se janta na história
No porão do delírio enquanto fugimos?
Cansa-me
O adeus dos camaradas
O aceno tísico
Dos debates.

Nada mais é tão distante
Que o lugar que quero chegar
A desgraça do momento
Não tem máscara
E é miúdo o dorso
Das perguntas


Apesar do aparente desalento, Charles Trocate não abdica da resistência, nem tampouco esmorece em sua logomaquia cabocla cevada à beira-rio. Sua tarefa, uma vez mais, é semear grãos de dúvida sobre as verdades cristalizadas, roçando com o verbo a textura opaca do mundo ao seu redor:

“É minha voz lambendo os fatos
Pondo de
Real estátua da dúvida
Água e sal que dormitam sentimentos”.
 

Ele o faz sem maiores hesitações, convicto de quesão navegáveis o rio e a noite”. Flui a poesia, reverso da agonia que a vida insiste em refugar:

Tempo de dúvidas passou
Ando avesso ao que é inútil e medroso
A galope
Pisando o solo dos mundos
Passará
O verão da angústia
Porque a vida não sabe possuí-la!”

Na Casa das Árvores, em Marabá, corpúsculo inédito em português e espanhol, há decerto menos estações, mas também é tempo de desfolhar o passado, em meio a razões incontestes que circulam “em forma de vento”. Charles recolheu a força das coisas insones e talvez agora esteja a reunir as folhas de sua castanheira para persistir em sua febril contenda, lutando corpo a corpo, todo o tempo, como o combatente de Drummond, “sem maior proveito que o da caça ao vento”.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Jorge Luis Ribeiro

Novos microcontos e crônicas do gênio de Inhapim


Ou do barro fazer nada
Havia um tempo de bambuzais azuis e montanhas brancas em que  tesouras de inox afiadas modelavam a bruta parte da existência. A costura fantasiava a pele de uma época minguada de cores. As lâminas verdes de folhas cegas ditavam a primavera, quando tardia. o inverno afiava farpas, pontas, agulhas, gravetos, o inverno feria de abandono o encantamento que era tão bom como a quase tristeza. A hostil beleza da seca azulava os olhos das serras. Mas nada era tão violento como o silêncio e as perspectivas dos sonhos. No verde abrupto, quando chovia, como a antevéspera da culpa, explodia o germinar tão verde que era quase pecado. A beleza dos cios exauria-se do sexo da terra. O futuro era ânsia. Agora, aqui, há o tempo conciliado. Faça dele o que quiser, a liberdade inunda a imutabilidade de qualquer ação. Os motivos se foram, e a terra calçou-se de asfalto e quero multidões para o amparo de minha solidão. Os insanos estão certos, é preciso morrer de paixão e rápido, antes do tédio, que o amor também é mortal. ( Marabá – 05-08-10/18-02-2011)

Ainda
A aurora turva de fumaça a dúvida que não de horizonte se preenche, mas da digital escolha e da entrega. As únicas verdades provisórias ficaram condenadas no instante e lograram o ímpeto de serem breves. Ou talvez não inexistiram como não existiu aquele menino que colecionava o fruto do juá, que fazia bezerros de barro, que perseguia o coito das coisas que tudo adoece de esperança. bem depois viria a saber como os deuses eram frágeis. as águas eram fortes, ainda hoje estão, correndo sempre, conjurando as metáforas da existência por que estarão de princípio porque estiveram depois do fim.  A aurora de agora clama aquele que é e que nunca se libertará de si. (Marabá - 2010/2011)

E daí?
O veraneio vai espichando os horizontes cinzas. Dos meses meeiros de estio um Itacaiúnas magro de costelas de pedras expostas vai correndo milenar sob as sais da lavadeira. Pássaros suburbanos cagam na face das pedras. Do lado do verão sobre o verde do rioum escuro e branco de precipitação. A tarde não sorveu o do chão nem subtraiu a fumaça sob as pontas finas de luz e corredeiras das horas. Tudo subtrai o sol e o cansaço no divagar da exausta segunda-feira. Contudo, vem a noite com seus dedos de oficina. Na água do chuveiro lava-se o suor de mais um dia. (Marabáverão 2008, 2010, 2011)

Como se não fosse comigo
Como se fruta de figo diante da multidão de fatos e pássaros. A hora vem e as planícies não são lisas nem ilesas. Fico distante de mim para não me ver partir e sou eu as pedras que pisas. Mas quando virão os fantasmas para que sejamos úteis de novo com as larvas do medo. O que farás da escuridão das cortinas se o amor não serve. não se sabe que credo ou que gole se bebe e não bastam as lembranças se agora tem o gosto da pedra como se o dia fosse algo que se sorve como espuma. Nunca aquilo que serve. É muito cedo para ser criança. Não sei quem dissolve a dor, senão outro amor, ou outra dor, outra cor sobre a carne exposta ao tempo. Somos assim, sós... E assim partiremos. Todo fim é . Como nascer. (Marabá – 2010/2011)

Se não fossem tantos os silêncios pensados
Queria te dizer que flores floriram e que frutas grávidas breve visitarão o sol, amoras precipitaram-se maduras de desejo ante o beijo tênue dos pássaros. Mas isso tudo é frágil de sentido ante as urgências da casa, e de sua ausência. Enquanto e quando vagueiam dores e indecisões na vastidão do lar eu suborno horas. De que adiantam solilóquios, garantias. De que adianta antecipar o tempo, comprimindo-o, de que adianta adiantar e agendar débitos se os musgos nascem de nossos silêncios e inauguram mais invernos. Ao menos partimos em outra flora, mas dói não nascer onde nos plantamos... é um tempo onde os cultivares do coração estão estranhos e nascendo assim aos milhares, como se transgênicos fossem os sentimentos, se reproduzem em escalas, mas sem a graça germinal das esperas. ((Marabá - 11/03/10 – 01/02/2011)                               

E se...
tirarmos os sentidos das palavras, suor e mais ardor das palavras, mais amargos delas, como elas são? Olhar dizer severo atrás do fino riso e beijo dizer nojo que limpa a saliva doce. E pai dizer aquilo interdito nas linhas do tapa que nunca pára de acabar sem encontrar o rosto, que dói nunca chegar a bater. E mãe dizer a dúvida de acalento em mornidão de repulsa. E a flor dizer mudez de cheiro em morte assim como coisa arrancada do talo. Para nunca mais alguém achar que deus é cor ou estadia de fraquezas últimas. E se a amnésia se lembrar do desejo. E a luz não enxergar o cheiro da noite que convida a nada, porqueescuro onde realmente pode se ver, ou pelo menos olhar reverberado ao olho de quem olha. E isso não é fácil. Todavia, a despeito disso se você não sabe ser, está no caminho certo de encontrar o caminho ainda que não haja estrada alguma. Não que não haja limites para... mas aprender como perdoar a existência pelo que é determinada por esta massa de tempo é difícil, ainda que não seja razoável.
(Marabá – Inhapim – Rio das Ostras – Belém – Marabá - 2010-2011)

Pausa e desejo
Os peitos de Marília acalentariam o mundo com sua luz e néctar branco. É uma maciez e bico em luz de apaziguar a boca e a luta em cor de espuma. Os peitos de Marília podem amainar qualquer sede e voracidade em maternal aconchego. Nos peitos de Marília circunscrevo tesão, medo, sevícia e gozo. Peitos para se mamar o lado oculto de todo leite escuro negado ao desejo. No peito de Marília leite e mel condensam pecado ao ato mais puro de desejo de mamar. Mas não é leite que se nutre dos peitos de Marília, nem maternal desejo, senão a morte que nos casa ao desejo de não tê-los meus... (Marabá – 11/2010)