Francisco Chagas Vitorino dos Santos Filho , o Chagas Filho , é jornalista e pedagogo , nascido e criado em Marabá , no Pará , em 1975. Em 2000, venceu o III Festival de Conto da Prefeitura de Marabá com “O juiz ”, uma historieta curiosa e surpreendente , mas bem representativa da sua paixão pelo cotidiano e pela loucura do dia-a-dia . O conto integra a pequena coletânea “Dez mentiras bem contadas”, ainda inédita . A seguir , dois contos de Chagas Filho .
O juiz
Ah, sim , o pessoal também gostava muito do juiz . Qualquer besteira , como roubo de galinha ou de porcos – os mais comuns –, era sempre levada a ele . Não passava nem pelo delegado .
É, sim senhor , ele angariou o respeito do delegado , a simpatia do prefeito e até a aceitação do presidente da câmara municipal, aquele velho rabugento . Ainda mais depois que deixou de morar na capital do Estado e comprou uma casinha na Rua 14 de Julho , passando a visitar a família em Belém somente nos finais de semana .
Naquela mesma época , havia sido solto o fazendeiro Zé da Prata , acusado de matar o colono João Gracinha, amigo particular do vereador Jeová , presidente da Câmara e única pessoa na cidade que não morria de amores pelo juiz . Na verdade ele só o aceitava, como eu já disse antes . Aliás , dizem que ele só gostava mesmo da mulher , dona Graça . Deus a tenha em bom lugar . Santa mulher aquela, suportou durante 15 anos a convivência com Jeová , que de Jeová só tinha o nome .
Maquiavélico que só ele , o edil foi até o fórum conversar com o juiz , dizendo-se também chocado com o acontecido e prometendo até criar uma lei municipal que punisse praticantes de crimes como aquele , com prestação de serviço à comunidade . Mas , no fundo , Jeová queria mesmo era saber quem poderia ter colocado o cartaz na porta de Dionísio, e qual não foi sua surpresa ao ouvir do juiz um áspero pedido para ir embora . E por pouco o vereador não viu também um palavrão desatar-se da boca do magistrado . Mas , logo o juizinho, que sempre lhe fora tolerante , mesmo na época em que os dois não se cheiravam. Por que raios ele o tratara mal agora ? Justamente quando o vereador lhe visitara como amigo !
- “Existe algo de podre no reino da Dinamarca”, imaginou.
Ao notar a presença de Jeová , Zé ainda ameaçou correr , mas foi seguro pelos capangas do vereador , enquanto o próprio Jeová mandou que ninguém se metesse na confusão . Quem se importa. Ninguém gostava mesmo de Zé da Prata .
O homem até mostrou as promissórias e os recibos de compra e venda assinados pelo juiz . O negócio foi tão absurdo que não houve intermediação nem de advogado para pedir o alvará de soltura . Coisa de cidade do interior .
A cidade inteira (se bem que não era muita gente ) se ajuntou na frente do modesto prédio do fórum para ver o homem saindo preso , embora não estivesse algemado, afinal de contas muitos ainda lhe deviam alguma consideração .
E lá estava ele , que sempre fora tido como um homem acima de qualquer suspeita .
Dionísio olhou para as pessoas ao seu redor e, morto de remorso e de vergonha , tomou a arma das mãos de um policial e se matou com um tiro no ouvido . Bem no meio da praça .
No domingo , um dia antes do cartaz aparecer na porta de Dionísio, nosso timinho “Itupiranga Mirim ” perdeu a decisão do campeonato com um gol de pênalti que não existiu. E para completar nossa desgraça , o juiz da partida , seu Arlindo alfaiate , expulsou dois colegas nossos , sem motivo nenhum . Todo mundo viu a roubalheira .
Juquinha, um dos expulsos e recém-chegado à cidade , era o mais indignado da turma . Ele até prometeu que no outro dia bem cedo iria colocar um grande cartaz na porta da casa do juiz , chamando ele de ladrão “çafado”.
E olha que a gente bem que tentou explicar para ele que “safado ” era com S, mas , pelo visto , não adiantou, o menino tascou o “Ç” e, o que é pior , no endereço errado.
O minador de corpos
A caminhonete chegando àquela hora da noite não era coisa normal , mas como a polícia não tem hora pra trabalhar , ninguém deu importância .
“Que é que foi sargento ?”, gritou seu Zé , lá da esquina . “Nada , não , só uma diligência ”, respondeu sargento Guerreiro . “Então chega prá cá e vamos jogar um baralho ”, chamou.
“Hoje não , que eu estou muito cansado , mas amanhã quem sabe…”, desconversou o policial , com a farda meio suja da poeira , e depois entrou na delegacia junto com os outros dois .
“Olha só , diz que tá cansado e vai prá dentro da delegacia ”, observa seu Zé .
Tentando espiar a carta que estava na mão dele, Clementino solta uma fofoquinha: “Parece que ele tá dormindo é lá mesmo ... Brigou com a mulher ”, cochichou.
“De novo !”, responderam os outros em coro , para em seguida voltar ao baralho que se estenderia por quase toda a noite .
O cheiro forte e podre convidava as crianças a não se aproximarem do local , mas sabe como é: criança vai aonde o passarinho está, e aí , não deu outra , acabaram encontrando um cadáver , já decomposto, irreconhecível e sem roupa .
E tinha gente querendo mexer , outros querendo jogar terra em cima . Uma “festa ” só . “Chama a polícia ”, gritou seu Zé . “Se o defunto num tem dono , a polícia tem que vim aqui tirá o corpo pra fazê inzame”. Pareceu ser a decisão mais acertada.
Enrolaram os restos do homem numa lona preta e colocaram na carroceria da caminhonete e levaram para Marabá . “Tem um tal de ‘ML’ lá que é onde eles bota os morto que num tem dono ”, explicava seu Zé para a multidão , enquanto todos deixavam o local e seguiam para a rotina de suas vidas .
A pequena vila agora vivia cercada de policiais militares e civis, revistando as pessoas nos bares , nos comércios e nas estradas ramais .
O pior não era isso . O pior era o cheiro de podridão , que impregnava o centro da vila , ali perto da delegacia e também do bar do seu Zé .
“Seu Zé , uns dois dia antes do primêro morto aparicê eu já tava sintino chêro ruim por aqui ”, dizia Clementino.
“É homi, eu num quiria falá nada , prá ninguém depois num vim me chamá de doido , mas óia que eu e a muié tava prá num agüentá mais a catinga da carniça ”, respondeu seu Zé .
“Até o sargento Guerreiro anda fedeno só a coisa pôde... apesar de que ele nunca foi cheroso mermo”, comentava Clementino, já caindo na gaitada com o amigo .
“Isso é bobagem minha gente ”, disse Laércio, funcionário da Sucam que sempre estava por ali . “É que nós estamos todos impressionados com esses corpos encontrados aqui na nossa vila ”.
“Ói só seu Zé ! Aqui no jornal de papel tá dizeno que quatro ladrão roubaram quinhentos mil do banco e sumiram no mundo ”.
“E tu num sabia não homi. Foi até a turma do sargento Guerreiro que pissiguiu eles até lá perto do porto da balsa , mas parece que os bandido era tubarão grande , pois passaram pro lado do Goiás e deixaram o sargento com a camionete no prego .
Clementino alfineta: “Eu tô achano que o sargento não ficou no prego não . Ele tava era com medo de corrê atrás dos homi, pois se eu mermo vi ele voltano com a bicha boazinha”.
Nisso, Terêncio entra correndo no bar : “Eu não quero atrapaiá a cunversa de ninguém , não , mas tem oto homi morto lá no matagal ”.
Parece que os homi morto era tudo assaltante, né sargento ?”, perguntou seu Zé , puxando assunto , pra ver se o policial se animava, já que parecia triste .
“Se é o que tão dizendo...”
“Mas , autoridade , se eles era tudo caboco peitudo , cuma é que se dexaram pegá assim ?”
“Isso aí eu num posso dizê, porque é segredo da profissão , mas que eles era peitudo , ah isso era . Pois morrero, um a um , sem contá onde tava o dinheiro do roubo ... E deixa eu ir embora pra casa , que eu não preciso mais dormir na delegacia ”.
Parece que eu perdi um pedaço da história , e o sargento perdeu uma coisinha um pouco mais ... concreta .
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